Tributo a Chávez


por Alan Woods

Hugo Chávez já não está mais conosco. Sempre um lutador, Chávez passou seus últimos meses numa luta de vida ou morte contra um inimigo cruel e implacável: o câncer. Brigou valentemente até o último momento, mas no final suas forças falharam. Na terça-feira, cinco de março, às 16 horas e 25 minutos, a causa da liberdade, do socialismo e da humanidade perdeu um grande homem e o autor destas linhas perdeu um grande amigo.

Embora o governo já tivesse informado de um deterioro da saúde de Chávez, com uma nova e grave infecção respiratória, a notícia de sua morte causou uma comoção. Eu conhecia o presidente como um homem saudável, enérgico e exuberante; tão cheio de vida e do desejo de viver e lutar, que sua morte parece ainda mais incrível. A muito precoce idade de 58 anos, o líder da Revolução Bolivariana nos foi arrebatado.

O pesar dos trabalhadores e dos pobres deixou-se expressar quando centenas de milhares saíram às ruas e praças chorando. Segundo alguns cálculos, dois milhões de pessoas marcharam em Caracas no dia de seu funeral.

A voz dos despossuídos

Não importa o que se pense de Chávez, o que importa é que ele rompeu o dique e abriu as comportas. Atreveu-se a enfrentar o poder da oligarquia e a desafiar o poderoso imperialismo norte-americano. Mesmo seus inimigos e críticos declarados não podem negar que mostrou uma coragem colossal. E ao dar um exemplo de coragem, evocou tremendas forças que estavam latentes nas profundezas da sociedade venezuelana durante gerações.

Hugo Chávez falou em nome dos pobres, dos despossuídos, da “famélica legião”, e deu voz aos milhões que não tinham voz. Estes nunca o esquecerão. Ganhou outro respaldo esmagador quando foi triunfalmente reeleito como presidente em outubro do ano passado.

A Revolução realizou reformas sérias no interesse dos trabalhadores e dos pobres nos âmbitos fundamentais da educação e da saúde. Mais recentemente, tinha colocado em marcha um ambicioso plano de construção de casas. Foram construídas e entregues 250 mil moradias a famílias necessitadas nos últimos dois anos, enquanto que na Espanha, por exemplo, no mesmo período, se produziram 250 mil embargos hipotecários.

Em um momento em que todos os governos anunciaram cortes no gasto na saúde pública e na educação, a Venezuela estabeleceu um sistema de saúde pública gratuita e massiva expansão do acesso à educação em todos os níveis, incluída a educação universitária gratuita. Na Europa, sobretudo nos países capitalistas mais débeis do sul da Europa, o desemprego está alcançando proporções epidêmicas e, na Espanha e na Grécia, mais de 60% dos jovens estão desempregados. A revolução bolivariana reduziu significativamente a pobreza e o desemprego. No entanto, os meios de comunicação capitalistas falam de “caos econômico” na Venezuela! Isto é o mesmo que por a verdade de cabeça para baixo.

Contudo, a conquista mais importante da revolução tem caráter intangível, poder-se-ia dizer, moral. Ela deu às massas um sentimento de sua própria dignidade como seres humanos, lhes proporcionou um agudo sentimento de justiça, lhes deu um novo sentimento de seu próprio poder, o que lhes deu uma nova confiança. A revolução lhes deu esperança para o futuro. Do ponto de vista da classe dominante e do imperialismo, isto representa um perigo mortal.

A Revolução Bolivariana de Hugo Chávez era uma ameaça direta ao imperialismo EUA, devido ao exemplo que dá às massas oprimidas no restante da América Latina. Desde que a Doutrina Monroe foi anunciada, os governantes dos EUA consideraram a América Latina como seu próprio quintal. Uma onda revolucionária varria todo o continente latino-americano e Hugo Chávez agiu como um poderoso catalizador para o movimento revolucionário em todo o continente. Isto o converteu em inimigo público número um de Washington.

No início, a oligarquia venezuelana são sabia o que pensar de Chávez. Acreditaram que seria como qualquer outro político venezuelano. Isto é, que estava à venda. Tão logo se deram conta de que não podiam comprar Chávez, puseram em marcha planos para derrubá-lo. Em 11 de abril de 2002, organizaram um golpe de Estado. Por trás deste golpe havia forças poderosas: latifundiários, banqueiros, capitalistas, meios de comunicação, a Igreja, os generais, os chefes de polícia, os dirigentes corruptos dos sindicatos e a CIA.

Chávez foi preso e sequestrado. Os conspiradores se instalaram no palácio de Miraflores. Mas, em 48 horas, foram derrotados por um levantamento espontâneo das massas. Unidades do Exército, leais a Chávez, se passaram para o lado das massas e o golpe entrou em colapso ignominiosamente em 13 de abril. Pela primeira vez na história da Venezuela, as massas derrubaram um golpe de Estado. Na realidade, o poder estava em suas mãos, mas tragicamente não o sabiam. Perdeu-se uma grande oportunidade.

Era Chávez um ditador?

O ódio que a classe dominante mostrou para com Chávez era o ódio dos ricos contra os pobres, dos exploradores contra os explorados. Por trás deste ódio, havia medo – o medo de perder sua riqueza, poder e privilégios. Refletia a divisão fundamental da sociedade em classes. E nunca foi eliminado. Em todo caso, foi crescendo em intensidade até sua morte e depois dela.

Não lembro uma campanha de tal ferocidade nos meios de comunicação como a que se desatou contra Hugo Chávez durante toda sua vida. Nunca houve antes tal fluxo de ódio, malícia, bílis e veneno. Nunca antes a chamada imprensa livre tinha recorrido a tantas distorções, falsificações e mentiras descaradas. E a avalanche de lixo continua sendo derramada.

Os argumentos mal-intencionados dos inimigos da Revolução no sentido de que Chávez era um ditador sempre foram falsos e venenosos. Independentemente do que cada um de nós possa pensar de Hugo Chávez, este, certamente, não era um ditador. Ganhou mais eleições e outros processos eleitorais que qualquer outro líder político no mundo.

De fato, a revolução bolivariana foi extremamente indulgente com seus opositores que, não se deve esquecer, organizaram um golpe de Estado ilegal contra um governo democraticamente eleito em 2002. Queixam-se muito de supostos maus tratos, mas não se vê nenhuma base para estas queixas.

Durante anos, aos meios de comunicação favoráveis à oposição foi permitido caluniar ao Presidente da maneira mais escandalosa, pedindo sua derrubada e até seu assassinato. Pode alguém acreditar que isto seria permitido nos EUA? RCTV, Globovisión, Venevisión... todos os canais privados de televisão, desempenharam papel muito ativo na organização do golpe de Estado de 2002. Se algum canal de televisão britânico tivesse feito uma décima parte das coisas que eles fizeram, lhes teria sido retirada a licença antes que pudessem dizer “David Cameron” e seus proprietários se encontrariam no tribunal em virtude das leis antiterroristas. Na Venezuela, tardaram mais de quatro anos para se tomar alguma medida contra algum deles, quando foi negada a renovação de sua licença de retransmissão aberta à RCTV, embora tenha sido permitida a continuar emitindo por cabo.

Apesar disso, a oposição se queixou de que as eleições presidenciais de 14 de abril foram convocadas demasiado cedo. Mas se o governo não tivesse convocado eleições, como era seu dever fazê-lo, de acordo com a Constituição, se queixariam de ditadura. Ninguém impediu que a oposição se apresentasse às eleições. O problema é que as perderam. Mas isso é a democracia! A oposição se quer ser verdadeiramente democrática deve começar por respeitar a vontade da maioria das pessoas e não usar suas alavancas econômicas e o controle dos meios de comunicação para sabotar a vontade democrática do povo.

O papel do indivíduo na história

O marxismo não nega o papel do indivíduo na história. Limita-se a afirmar que os indivíduos, por mais capazes que sejam, não são agentes livres. Seu papel sempre está limitado e condicionado por circunstâncias alheias ao seu controle. Mas quando surge uma concatenação de circunstâncias, são requeridos homens e mulheres de certo tipo que saibam aproveitar essas circunstâncias para mobilizar milhões de pessoas à ação.

Sem dois homens, Lênin e Trotsky, a Revolução Russa de 1917 não teria obtido êxito. Contudo, estes mesmos dois homens, durante a maior parte de suas vidas, se encontravam em pequena minoria, isolados das massas e sem poder influir nos acontecimentos de maneira decisiva. Sem o Caracazo, em fevereiro de 1989, não seria impossível que Hugo Chávez continuasse sendo um oficial do exército exercendo uma carreira militar normal e desconhecido do público.

Mas há outro aspecto da questão. Sem suas ações, também é possível que aqueles trágicos acontecimentos tivessem passado à história como uma mera nota de pé de página. A sociedade e a política venezuelanas teriam voltado à rotina monótona determinada pela tradição e pela inércia do costume. O papel pessoal de Chávez foi decisivo. Ele atuou como um catalizador, o qual, quando todas as condições estão presentes, produz uma mudança dramática.

Perto do final de sua vida, Frederico Engels escreveu:

“Os homens fazem, eles mesmos, sua história, mas até agora não como uma vontade coletiva e de acordo com um plano coletivo, nem mesmo dentro de uma sociedade dada e circunscrita. Suas aspirações se entrecruzam; por isso em todas estas sociedades impera a necessidade, cujo complemento e forma de se manifestar é a casualidade. A necessidade que aqui se impõe através da casualidade é também, em última instância, a econômica. E é aqui onde devemos falar dos chamados grandes homens. O fato de que surja um destes, precisamente este e em um momento e país determinado, é, naturalmente, pura casualidade. Mas se o suprimimos, se colocaria a necessidade de substituí-lo, e aparecerá um substituto, bom ou mal, mas no longo prazo aparecerá” (Engels, Carta a Borgius, 25 de janeiro de 1849, Marx e Engels, Correspondência).

As palavras importantes aqui são: “bom ou mau”. A qualidade dos líderes individuais é extremamente importante. Se tiver um bom dentista e ele cai enfermo, não tenho nenhuma dúvida de que se pode encontrar um substituto “bom ou mau”. Mas, para mim, não é indiferente se o substituto é um dentista competente ou não. As coisas são ainda mais graves no caso da guerra.

Se Napoleão não estivesse presente na batalha de Austerlitz, os franceses teriam encontrado um substituto, naturalmente. Mas, se este substituto teria a capacidade de ganhar a batalha é outra coisa. O mesmo acontece com as revoluções. Se Lênin e Trotsky não estivessem presentes em novembro de 1917, sabemos que os substituiriam: Stalin, Zinoviev e Kamenev. Também sabemos que sob a sua liderança a revolução russa nunca teria obtido êxito. “Bom ou mau” faz toda a diferença.

A personalidade de um indivíduo pode produzir impacto sobre os processos da história. Para mim, o interessante é a relação dialética entre sujeito e objeto, ou, como Hegel o teria expressado, entre o Particular e o Universal. Seria muito instrutivo escrever um livro sobre a relação exata entre Hugo Chávez e a revolução venezuelana. Que existe tal relação, disto não se duvida. Se for positivo ou negativo, dependerá do ponto de vista de classe que cada um defende.

Do ponto de vista das massas, dos pobres e dos oprimidos, Hugo Chávez foi um homem que os elevou e que os inspirou, devido a sua indubitável coragem pessoal, a realizar atos de heroísmo sem par.

Chávez e as massas

Há alguns anos, quando me encontrava em um giro de conferências na Itália, um jornalista de esquerda de Il Manifesto me perguntou em tom de perplexidade: “Mas Alan, que tem a ver a situação na Venezuela com o modelo clássico da revolução proletária?”. Em resposta, citei as palavras de Lênin: “Quem quiser ver uma revolução ‘pura’ nunca vai viver para vê-la. Essa pessoa fala de revolução e não sabe o que é uma revolução”.

Uma revolução é, essencialmente, uma situação em que as massas começam a participar ativamente na política e a tomar seu destino em suas próprias mãos. Leon Trotsky – que, inegavelmente, sabia algumas coisas sobre as revoluções – responde da seguinte forma:

“O traço característico mais indiscutível das revoluções é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Em tempos normais, o Estado, seja monárquico ou democrático, está acima da nação; a história corre a cargo dos especialistas deste ofício: os monarcas, os ministros, os burocratas, os parlamentares, os jornalistas. Mas, nos momentos decisivos, quando a ordem estabelecida se torna insuportável para as massas, estas rompem as barreiras que as separam da arena política, derrubam seus representantes tradicionais e, com sua intervenção, criam um ponto de partida para o novo regime. Deixemos aos moralistas julgar se isto está bem ou mal. Para nós, basta-nos tomar os fatos tal como nos brinda seu desenvolvimento objetivo. A história das revoluções é para nós, acima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no governo de seus próprios destinos” (Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Prefácio).

Este é certamente o caso da Venezuela. O despertar das massas e sua participação ativa na política é a característica mais decisiva da revolução venezuelana e o segredo de seu êxito.

A relação entre Hugo Chávez e as massas foi muito complexa e dialética. Tive a oportunidade de vê-lo muitas vezes com meus próprios olhos, quando assisti a reuniões massivas quando se dirigia ao povo. Despertou entusiasmo e devoção colossais. Vimos as mesmas emoções nas ruas de Caracas nos dias antes e depois de seu funeral.

Quando Chávez falava aos operários e camponeses, o efeito sempre era elétrico. Em tais ocasiões, podia-se sentir uma espécie de reação química entre Chávez e as massas. Não havia dúvida da intensa lealdade que as massas pobres e oprimidas sentiam por este homem. Hugo Chávez, pela primeira vez, deu aos pobres e oprimidos uma voz e esperança. Esse é o segredo da extraordinária devoção e lealdade que sempre lhe mostraram. Ele lhes despertou para a vida e veem a si mesmo nele.

Os inimigos direitistas de Chávez não podiam entender a razão disto. Não podiam entender isto porque são organicamente incapazes de compreender a dinâmica da própria revolução. A classe dominante e seus intelectuais prostituídos não podem aceitar que as massas tenham mente e personalidade próprias, que formam uma força tremendamente criativa que não somente são capazes de mudar a sociedade, como também de governa-la. Nunca podem admitir tal coisa porque fazê-lo seria admitir sua própria bancarrota e confessar que não são agentes sociais necessários e indispensáveis dotados do direito divino de governar, e sim uma classe parasita e supérflua e um obstáculo reacionário ao progresso.

Mas não apenas a burguesia foi incapaz de compreender o que estava ocorrendo na Venezuela. Muitos na esquerda são igualmente incapazes de compreender este fenômeno. Incapazes de se situar no ponto de vista das massas, adotaram uma atitude arrogante, como se as massas, cujo nome estavam sempre invocando, fossem crianças ignorantes que necessitam ser educados por eles. Infelizmente para estes “esquerdistas”, as massas não mostraram o menor interesse nestes aspirantes a educadores, nem em suas lições.

Como podemos explicar a química peculiar que existia entre Hugo Chávez e as massas? É verdade que ele possuía dons únicos de comunicador: uma poderosa personalidade, um intelecto penetrante e uma profunda compreensão da psicologia e das aspirações das massas. No entanto, o verdadeiro segredo se encontra, não no âmbito da psicologia, mas das relações entre as classes.

As massas se viram refletidas em Chávez. Identificaram-se com ele como o homem que primeiros lhes despertou para a vida política e que deu voz as suas aspirações. Elas personificam a revolução nele. Para elas, Hugo Chávez e a Revolução eram uma só e mesma coisa. Escrevi sobre minhas impressões quando vi isto pela primeira vez em abril de 2004:

“Enquanto [Chávez] falava, tive a oportunidade de ver a reação das massas na grande tela por trás do presidente. Velhos e jovens, homens e mulheres, a esmagadora maioria destes pertencentes à classe trabalhadora, escutaram atentamente, absorvendo cada palavra. Aplaudiram, aclamaram, riram e, mesmo, choraram. Este era o rosto de um povo que desperta, um povo que tomou consciência de si mesmo como participante ativo no processo histórico: a cara de uma revolução”.

O processo tem caráter recíproco. Chávez hauria forças do apoio das massas, com as quais se identificava plenamente. Em sua maneira de falar – espontânea e totalmente carente da rígida formalidade do político profissional – se conectava com elas. Se às vezes havia falta de claridade, mesmo isto refletia a etapa em que se encontrava o movimento das massas. A identidade era completa.

Minhas relações pessoais com Chávez

Conhecia Hugo Chávez há quase uma década e tinha excelentes relações pessoais com ele desde nosso primeiro encontro em abril de 2004. Causou-me impressão muito profunda e ele sempre se referia calidamente a mim como seu amigo. Leu os meus livros e foi suficientemente amável para elogiá-los e recomendá-los publicamente em várias ocasiões.

Nossas relações eram, portanto, de caráter político e ideológico. Contudo, as tentativas da oposição de me descrever como assessor e mesmo seu “guru” político eram totalmente falsas. Era uma tentativa mal dissimulada de inventar algum tipo de influência externa maligna no Presidente. De fato, não era fácil influenciar ao presidente Chávez, que era um homem muito inteligente e independente, com uma vontade muito forte.

Hugo Chávez possuía uma energia ilimitada. Sempre parecia estar transbordante de energia e falando sem parar sobre todo tipo de coisas. Isto não o tornou um homem fácil de trabalhar com ele, como seu secretário pessoal me disse: “Eu faria qualquer coisa por ele, mas nunca há um momento de paz. Às vezes, não posso sequer ir à privada. Começo a caminhar nessa direção e alguém grita: ‘o presidente pede tua presença! ’. Não era um homem que se cansasse facilmente. Tinha imensas reservas de energia, começando a trabalhar todos os dias antes das oito da manhã e terminando às três da manhã. Perguntei-lhe, então, se já ia dormir. Respondeu-me: ‘Não, ainda vou ler’”.

Conheci Chávez em abril de 2004, quando assisti ao II Encontro Internacional de Solidariedade à Revolução Venezuelana, que se celebrou no segundo aniversário da derrota da tentativa de contrarrevolução de abril de 2002. Não conheci muitas pessoas em minha vida que me tenham causado uma impressão tão profunda e duradoura.

Apresentei-me como autor de Razão e Revolução. Apertando com firmeza minha mão, olhou-me curiosamente: “Que livro disse?”.

“Razão e Revolução”.

Um amplo sorriso iluminou seu rosto. “Esse livro é fantástico! Felicito-te”.

Logo, olhando ao seu redor, anunciou: “Todos vocês devem ler este livro!”.

Ia me retirar, para que outros pudessem conhecer ao Presidente, quando me deteve. Agora parecia estar alheio ao que o rodeava e falou com evidente entusiasmo: “Sabes? Tenho esse livro em minha mesa de cabeceira e estou lendo-o todas as noites. Cheguei ao capítulo sobre ‘O processo molecular da revolução’. Já sabes, onde escreves acerca da energia de Gibbs”. Parece que esta seção teve um impacto considerável sobre ele, porque o cita continuamente em seus discursos. O senhor Gibbs provavelmente nunca foi tão famoso antes.

Mais tarde, fui convidado a me reunir com o Presidente no palácio de Miraflores. Avisaram-me que dispunha de um quarto de hora ou vinte minutos no máximo. Na verdade, falamos durante uma hora e meia. Quando entrei em seu escritório, estava sentado à mesa, com um enorme retrato de Simón Bolívar detrás dele. Sobre a mesa, notei que tinha um volume de Razão e Revolução e uma carta que lhe havia enviado. A carta havia sido fortemente sublinhada em azul.

Chávez me saudou muito afetuosamente. Aqui não houve protocolo, e sim receptividade e franqueza. Começou me perguntando por Gales e por meus antecedentes familiares. Expliquei-lhe que era de uma família da classe trabalhadora e me respondeu que ele era de uma família camponesa. “Bem, Alan, que tens a dizer?”, perguntou-me. Na realidade, eu estava mais interessado no que ele tivesse a dizer, que era muito interessante.

Primeiro lhe apresentei dois livros: minha história do Partido Bolchevique (Bolchevismo, o caminho à revolução) e Rússia – da revolução à contrarrevolução, de Ted Grant. Parecia estar muito satisfeito. “Encantam-me os livros”, disse-me. “Se são bons livros, ainda gosto mais. Mas, mesmo quando são maus livros, continuam me dando prazer”.

Fermentação nas forças armadas

Abrindo o livro sobre o Bolchevismo, leu a dedicatória que havia escrito que diz: “Para o presidente Hugo Chávez com meus melhores votos. O caminho à revolução passa pelas ideias, programa e tradições do marxismo. Adiante para a vitória!”. Disse-me: “Essa é uma dedicatória maravilhosa. Obrigado, Alan”. Começou a passar as páginas e se deteve:

“Vejo que escreves sobre Plekhanov”.

“Exatamente”.

“Li um livro de Plekhanov há muito tempo e me causou uma grande impressão. Chamava-se O papel do indivíduo na história. Você o conhece?”

“É claro que sim”.

“O papel do indivíduo na história”, refletiu. “Bom, eu sei que nenhum de nós é realmente indispensável”, disse.

“Isto não é totalmente correto”, respondi-lhe. “Há momentos na história em que um indivíduo pode representar uma diferença fundamental”.

“Sim, fiquei feliz de ver que, em Razão e Revolução, dizes que o marxismo não se pode reduzir aos fatores econômicos”.

“Isso é correto. Dizer o contrário é uma caricatura vulgar do marxismo”.

“Sabes quando li o livro de Plekhanov, O papel do indivíduo na história?” perguntou-me.

“Não tens ideia”.

“Li-o quando era oficial em serviço em uma unidade de luta contra a guerrilha nas montanhas. Deram-nos material para ler para que pudéssemos compreender a subversão. Li que os subversivos operam no meio do povo, defendem seus interesses e ganham seus corações e mentes. Pareceu-me uma ideia bastante boa!”.

“Então, comecei a ler o livro de Plekhanov e me causou uma profunda impressão. Lembro que era uma formosa noite estrelada nas montanhas e eu estava na minha tenda de campanha lendo à luz de uma lanterna. As coisas que li me fizeram pensar e comecei a me questionar sobre o que estava fazendo no exército. Senti-me muito infeliz.

“Para nós não havia problemas, marchando nas montanhas com fuzis na mão. A guerrilha tampouco tinha problemas – estava fazendo o mesmo que nós. Mas os que sofriam eram os camponeses. Estavam indefesos e tinham uma vida dura. Lembro-me de um dia em que fomos a um povoado e vi alguns dos soldados torturando dois camponeses. Dei-lhes voz de alto imediato e lhes disse que não consentiria nada disto enquanto eu estivesse no comando.

“Bom, isso realmente me meteu em problemas. Tentaram mesmo levar-me a julgamento por insubordinação militar [deu ênfase especial às duas últimas palavras]. Depois disso decidi que o exército não era lugar para mim. Queria renunciar, mas me impediu um velho comunista que me disse: ‘Tu és mais útil à Revolução no exército que dez sindicalistas’. Assim, que fiquei. Agora penso que foi uma decisão correta.

“Sabias que criei um exército nas montanhas? Era um exército de cinco homens. Mas tínhamos um nome muito longo. Chamávamo-nos O Exército de Libertação Nacional Popular Simón Bolívar”. Riu à vontade.

“Quando foi isso?”, perguntei-lhe.

“Em 1974. Podes ver, disse-me a mim mesmo: esta é a terra de Simón Bolívar. Tem que haver algo de seu espírito ainda vivo, algo em nossos genes, suponho. Assim, nos propomos revivê-lo”.

Chávez continuou como se pensasse em voz alta:

“Há dois anos, no momento do golpe, quando fui detido e me levaram preso, pensei que ia ser fuzilado. Perguntei-me a mim mesmo: desperdicei os últimos 25 anos de minha vida? Foi tudo em vão? Mas não foi em vão, como o levantamento do regimento de paraquedistas mostrou”.

Chávez relembra o golpe

Chávez me falou com certo detalhe sobre o golpe. Relatou como o mantiveram em completo isolamento. Os rebeldes queriam pressioná-lo para assinar um documento renunciando a seu cargo. Então lhe deixariam ir para o exílio em Cuba ou em algum outro lugar. Não precisava ser eliminado fisicamente, mas moralmente, para ficar desacreditado aos olhos de seus seguidores. Mas se negou a assinar.

Os conspiradores utilizaram todo tipo de truques para conseguir que renunciasse. Inclusive utilizaram a Igreja (da qual Chávez falou causticamente).

“Sim, inclusive enviaram ao Cardeal para me persuadir. Disse-me um monte de mentiras: que não tinha apoio; que todos me haviam abandonado; que o exército estava firmemente por trás do golpe. Eu não tinha informação, e estava completamente isolado do mundo exterior. Mas ainda assim me neguei a assinar.

“Meus captores estavam ficando nervosos. Estavam recebendo um montão de chamadas telefônicas de Washington exigindo saber onde estava a carta assinada de renúncia. Quando viram que a carta não chegava, ficaram desesperados. O cardeal me pressionou para assinar a fim de evitar a guerra civil e o derramamento de sangue. Mas, em seguida, me dei conta de uma mudança repentina em seu tom. Tinha se tornado cortês e conciliador. Disse para mim mesmo: se ele está falando assim, deve ter se passado alguma coisa.

“Nesse momento soou o telefone. Um de meus captores disse: ‘é o ministro da defesa. Quer falar com você’. Disse-lhe que não falaria com nenhum golpista. Então, ele disse: ‘mas é o seu ministro da defesa’. Arranquei-lhe o telefone da mão e então ouvi uma voz que soava como o sol. Não sei se posso dizer isto, mas de todos os modos, era assim exatamente que isto me soava”.

Desta conversa pude formar uma impressão de Chávez como homem. A primeira coisa que chama a atenção é que era transparentemente honesto. Sua sinceridade era absolutamente clara, como o era sua dedicação à causa da revolução e seu ódio à injustiça e à opressão. Naturalmente, estas qualidades por si mesmas não são suficientes para garantir a vitória da revolução, mas sem dúvida explicam sua tremenda popularidade entre as massas.

Depois da derrota do golpe teria sido possível realizar uma revolução socialista de maneira rápida e indolor. Por desgraça, a oportunidade se perdeu e isto permitiu aos reacionários se reagrupar e organizar um novo intento golpista no chamado ‘paro (na realidade um fechamento) patronal’, que produziu um grave dano à economia. A nova tentativa foi derrotada pelos trabalhadores, que tomaram o controle das fábricas e das instalações petrolíferas e expulsaram os reacionários. Mais uma vez existia a possibilidade de uma transformação radical sem uma guerra civil. E mais uma vez se perdeu a oportunidade.

A luta pelo socialismo

Em nossa primeira reunião me perguntou que pensava do movimento na Venezuela. Respondi-lhe que era muito impressionante, que as massas eram claramente a principal força motriz e que todos os ingredientes estavam presentes para levar a revolução até o final, mas que lhe faltava algo. Perguntou-me o que era isso. Respondi-lhe que a debilidade do movimento era a ausência de uma ideologia claramente definida e a ausência de quadros. Ele estava de acordo.

“Sabes, eu não me considero marxista porque não li suficientes livros marxistas”, disse.

Desta conversa saquei a impressão de que Hugo Chávez estava à procura de ideias e que estava genuinamente interessado nas ideias do marxismo e desejoso de aprender. Escrevi nesse momento: “Isto se relaciona com a etapa a que a revolução venezuelana chegou. Mais cedo do que muitos esperam, ela enfrentará uma dura escolha: ou liquidar o poder econômico da oligarquia, ou dirigir-se logo para uma derrota”. Os acontecimentos posteriores demonstraram que minhas primeiras impressões estavam bem fundadas.

Hugo Chávez desempenhou um papel muito importante na reabertura do debate sobre o socialismo em um momento em que muitos o haviam descartado. O presidente recomendava com frequência a leitura das obras de Marx, Lênin e Trotsky. Isto foi enormemente positivo.

O desenvolvimento das ideias políticas de Hugo Chávez representa uma evolução na qual participaram muitos fatores. Desenvolveu-se e cresceu em estatura junto com a Revolução. A Revolução em si é uma poderosa escola onde milhões de homens e mulheres aprendem através de sua experiência. Lênin, que era um dos maiores teóricos marxistas, disse uma vez que para as massas um grama de prática vale uma tonelada de teoria.

Esta curva de aprendizagem da Revolução não é uma linha reta. Há momentos em que a revolução pressiona para frente, varrendo tudo ao seu passo. Mas também há momentos de cansaço, desilusão, inclusive de desespero. Pode haver todo tipo de contratempos, confusão, retrocessos e erros. Mas depois de cada revés as massas aprendem de seus erros, tiram conclusões e a passam a um plano superior. O propósito de uma direção e de um partido revolucionário é ajudar a manter o número de erros no mínimo.

Seria possível assinalar toda uma série de contradições, dúvidas e inconsistências na evolução política de Chávez nos últimos 14 anos. Mas a linha geral foi sempre à esquerda. A razão destas contradições há que se buscar nas pressões que forças de classes opostas exerceram sobre o Movimento Bolivariano.

A pressão da burguesia e do imperialismo se refletiu pela ala direita do movimento bolivariano e da burocracia contrarrevolucionária. Por outro lado, a pressão dos trabalhadores e camponeses encontrou sua expressão nas bases do PSUV. Estas pressões às vezes empurraram o Movimento à direita, mas isto foi contraposto pela pressão das bases.

Em janeiro de 2005, o presidente Chávez deu um discurso no Estádio Gigantinho na sessão de fechamento do Foro Social Mundial em Porto Alegre, Brasil. Neste discurso, disse: “Cada dia estou mais convencido, sem nenhuma dúvida em minha mente e como disseram muitos intelectuais, de que é necessário superar o capitalismo. Mas o capitalismo não pode ser superado de dentro do próprio capitalismo, e sim através do socialismo, do verdadeiro socialismo, com igualdade e justiça. Mas também estou convencido de que é possível fazê-lo sob a democracia, mas não o tipo de democracia imposta a partir de Washington [...] É impossível dentro do marco do sistema capitalista resolver os graves problemas de pobreza da maioria da população mundial. Devemos superar o capitalismo. Mas não podemos recorrer ao capitalismo de estado, que seria a mesma perversão da União Soviética”.

Estive presente em um comício em Caracas, quanto pela primeira vez Chávez fez sua dramática declaração de que ele era um socialista. Se não me falha a memória, foi em dezembro de 2004. Fez estas declarações no Teatro Teresa Carreño de Caracas, que estava cheio de trabalhadores e jovens vestidos de camisetas vermelhas. Depois de haver falado durante bastante tempo, de repente afastou os papéis para um lado e disse:

“Agora quero dizer algo de mim mesmo. Nos últimos anos estive pensando muito. Tive um montão de experiência. Li muito. Tive muitas discussões e cheguei à seguinte conclusão: EU SOU SOCIALISTA!”.

Nesse momento, a sala explodiu em aplausos e gritos entusiastas. Eram estas as palavras que as pessoas queriam ouvir. Mas me dei conta de algo bastante estranho. Eu me encontrava na parte dianteira da sala com o irmão do presidente, Adán Chávez, rodeado de ministros do governo. Dei-me conta que nem todos os ministros estavam aplaudindo.

Chávez disse: “Fui aprendendo na realidade... sobretudo depois do golpe de abril de 2002, depois da arremetida imperialista com essa selvagem ação da sabotagem econômica, terrorismo; me dei conta que o único caminho para sermos livres, para que a Venezuela seja livre, independente, o único estado no qual o povo possa gozar do benefício da igualdade e da justiça social, é o socialismo”.

À pergunta de que papel desempenharam meus escritos nesta evolução, não posso contestar com certeza. Mas houve um incidente que pode lançar alguma luz sobre esta questão. Durante o Festival Mundial da Juventude em 2005, onde o Presidente falou e fez um discurso muito radical, citando Marx, Trotsky e Rosa Luxemburgo. No final, cumprimentei-o e o felicitei por seu discurso. Ele continuou apertando minha mão e disse, olhando-me fixamente nos olhos: “Não, é somente algumas reflexões sobre as ideias que aprendi de ti”.

Mais tarde, em Alô Presidente (domingo, 27 de junho de 2008) se referiu a meu livro Reformismo ou Revolução, Marxismo e Socialismo do Século XXI da seguinte forma: “Olhem, Alan Woods, Reformismo ou Revolução; reformismo, até quando? Eu o estou lendo a fundo, estou tomando nota deste livro”. Em outra ocasião, disse: “A Revolução tem aliados em todo o mundo. Um deles é a Corrente Marxista Internacional. Marx voltou, e com ele, suas ideias, que são um elemento insubstituível das ideias da revolução”.

O câncer da burocracia

Uma revolução exitosa sempre tem muitos “amigos”. Esses elementos de classe média que se sentem atraídos pelo poder como moscas pelo mel, que estão dispostos a cantar elogios à Revolução, sempre e quando se mantenham no poder, mas que não fazem nada de útil para salvá-la de seus inimigos, que choram algumas lágrimas de crocodilo quando é derrotada, e no dia seguinte passam ao segundo ponto da ordem do dia: tais “amigos” se conseguem aos pares por um centavo. Um verdadeiro amigo não é alguém que sempre te diz que tens razão. Um verdadeiro amigo é alguém que não tem medo de olhar-te nos olhos e dizer-te que te equivocas.

Os melhores amigos da Revolução Venezuelana – de fato, seus únicos amigos verdadeiros são a classe trabalhadora do mundo e seus representantes mais conscientes – são os marxistas revolucionários. São as pessoas que vão mover céus e terras para defender a revolução venezuelana contra seus inimigos. Ao mesmo tempo, os verdadeiros amigos da Revolução – amigos honestos e leais – sempre dizem o que pensam sem medo. Quando consideramos que está se tomando o caminho correto, vamos elogiá-lo. Quando pensamos que estão sendo cometidos erros, de forma amistosa, mas firme, vamos criticá-los. Que outro tipo de conduta se deve esperar dos revolucionários e internacionalistas reais?

A revolução enfrenta muitos perigos, não somente externamente, mas internamente. Há alguns anos, o presidente Chávez me disse: “Há demasiados governadores e alcaides que, depois de serem eleitos, se rodeiam de homens ricos e mulheres formosas e se esquecem do povo”. Referiu-se em mais de uma ocasião à burocracia contrarrevolucionária. Esta existe e constitui uma espécie de Quinta Coluna dentro da Revolução.

As massas estavam aprendendo rapidamente na escola da revolução e tirando suas conclusões. A principal conclusão foi que o processo revolucionário deve ser empurrado para frente, deve enfrentar seus inimigos e varrer todos os obstáculos para o lado. Este desejo ardente das massas, contudo, constantemente se chocava com a resistência dos elementos conservadores e reformistas que estão pedindo constantemente precaução e que, na prática, querem por um freio à revolução. O destino da revolução depende da solução desta contradição.

O instinto de Chávez foi sempre o de ir com os trabalhadores e camponeses. Contudo, enfrentou uma burocracia hostil, que continuamente frustrava seus planos, derrogava seus estatutos e sabotava a Revolução. Se há de ser criticado é por haver sido demasiado tolerante com estes elementos durante demasiado tempo. Creio que o fez porque temia que as divisões no movimento pudessem socavar a Revolução. Isso foi um erro. O que socava a revolução é a corrupção e o arrivismo. A burocracia é um câncer que corrói as entranhas da Revolução e a destrói a partir de dentro.

Infelizmente, dentro do PSUV e do movimento bolivariano há gente em cargos públicos, governadores, alcaides etc., que juram por Chávez em cada frase, que usam camisetas vermelhas, mas que na realidade são oportunistas, arrivistas e burgueses corruptos, que não têm nada a ver com a revolução. Estes elementos estiveram bloqueando a iniciativa revolucionária das massas e inclusive socavando os decretos do presidente Chávez.

Os trabalhadores e camponeses correntes deveriam colher uma grande escova e varrer todo este lixo fora do Movimento e tomar o controle. Enquanto não se fizer isto, não se pode falar de verdadeiro socialismo na Venezuela.

O internacionalismo de Chávez

Chávez sempre falou nos termos mais inequívocos sobre seu compromisso com o socialismo, não somente na Venezuela e na América Latina, mas em escala mundial. Por exemplo, quando em 2009 lançou a ideia de formar a Quinta Internacional, que mais tarde foi sabotada pela burocracia e pelos estalinistas, disse: “Retomemos o canto da grande Rosa Luxemburgo, socialismo ou barbárie, salvemos o mundo, façamos o socialismo, salvemos o mundo, derrotemos o imperialismo, salvemos o mundo, derrotemos ao capitalismo”.

Denunciou os crimes do imperialismo EUA nos termos mais fortes. No discurso ante as Nações Unidas que todos recordam, se referiu ao então presidente dos EUA, George W. Bush, como “o diabo”.

“O diabo está na casa. Ontem veio o diabo aqui, neste lugar. Ainda fede a enxofre... Ontem, senhoras, senhores, desde esta tribuna, o senhor presidente dos Estados Unidos, a quem chamo ‘O Diabo’, veio aqui falando como dono do mundo”.

Como marxista, não creio no diabo, mas o que é certo é que as ações desse presidente tão cristão, George W. Bush, e de seu piedoso compincha, Tony Blair, tornaram o Iraque e o Afeganistão em um inferno para milhões de pessoas. Já era hora de que alguém falasse com valentia para denunciar seus crimes e fazê-lo, não na linguagem hipócrita da diplomacia, mas em adequada linguagem enfática. Os hipócritas fingiram estar surpresos, mas o resto do mundo aplaudiu.

Acerca de George W. Bush, Chávez se expressou com o mais profundo desprezo. Ele me disse:

“Pessoalmente, Bush é um covarde. Atacou Fidel Castro em uma reunião da OEA, quando Fidel não estava presente. Se ele estivesse ali, não se teria atrevido a fazê-lo. Dizem que tem medo de se cruzar comigo e acredito nisto. Trata de me evitar. Mas uma vez coincidimos em uma cúpula da OEA e ele estava sentado muito próximo de mim”.

Chávez riu intimamente. “Eu tinha uma dessas cadeiras giratórias e estava sentado de costas para ele. Então, depois de um tempo, dei a volta na cadeira e repentinamente estava cara a cara com ele. ‘Olá, senhor presidente! ’, disse-lhe. Seu rosto mudou de cor; de vermelho a cor de amora, de cor de amora a azul. Pode-se ver que o homem tem uma multidão de complexos. Isso o torna perigoso devido ao poder que tem nas mãos”.

Havia, naturalmente, alguns elementos da política da República Bolivariana com os quais os marxistas não estariam de acordo. Seus maiores pontos débeis estavam no campo da política exterior. Numa tentativa de superar o isolamento diplomático que estava sendo organizado pelo imperialismo EUA, o governo buscou aliados em alguns lugares muito inusitados. Trataram de formar um bloco, sobretudo dos países produtores de petróleo, contra o imperialismo estadunidense.

Em princípio, isso não era incorreto. Com o fim de romper seu isolamento, a jovem República Soviética construiu relações com países como a Turquia de Kemal Ataturk. Mas esta política foi complementada com as atividades da Internacional Comunista. Contudo, o cultivo de relações com líderes como os do Irã, foi um grave erro, que arranhou a reputação da Revolução Bolivariana no Irã e no Oriente Médio.

Mas Chávez foi um verdadeiro internacionalista. Quando denunciou os crimes do imperialismo dos EUA sempre fez uma cuidadosa distinção entre a classe dominante e as pessoas comuns dos Estados Unidos, com as quais não albergava sentimentos de hostilidade, muito pelo contrário. No momento de seu famoso discurso na ONU, tomou a medida sem precedentes de visitar o Bronx do Sul, um bairro de pobres e da classe trabalhadora de Nova Iorque. As pessoas ainda se lembram dessa visita. Que outro líder mundial faria uma coisa assim?

Quando falava de socialismo, sempre falava da necessidade de socialismo mundial. Esta ideia ele a compartilhava com a tendência que represento. Em muitas ocasiões, Hugo Chávez expressou seu firme apoio à campanha Mãos Fora da Venezuela.

Tarefas por terminar

Chávez morreu antes de completar a grande tarefa que se tinha proposto a si mesmo: a realização da revolução socialista na Venezuela. Cabe agora aos trabalhadores e camponeses – a autêntica força motriz da Revolução Bolivariana – realizar esta tarefa até o final. Se não o fizer, será uma traição a sua memória.

O presidente Nicolás Maduro prometeu manter o legado revolucionário, anti-imperialista e socialista de Chávez. O Movimento Bolivariano deve defender o legado revolucionário de Chávez e levar a cabo a revolução até o final. Do contrário, enfrentará o fracasso. Mas dentro do movimento bolivariano há diferentes correntes e tendências.

A ala esquerda, refletindo as aspirações revolucionárias das massas, deseja continuar adiante com a Revolução, vencer a resistência da oligarquia e armar o povo. A direita (os reformistas e socialdemocratas), na prática, quer por um fim à revolução, ou pelo menos torna-la mais lenta e chegar a um acordo com a oligarquia e o imperialismo.

Na realidade, esta última opção não existe. Não há compromisso possível com os inimigos da Revolução, da mesma forma que não é possível misturar o azeite com a água. Toda a lógica da situação está se movendo na direção de um enfrentamento aberto entre as classes. O destino da revolução depende de como se resolva este conflito.

As conquistas da Revolução somente podem se garantir se se dá um passo audaz à frente, verdadeiramente irreversível. Estou seguro de que isto era o que o Presidente Chávez pretendia fazer, mas sua morte prematura o impediu de realizar este plano. Aceito que há muitos problemas, mas estou seguro de que a principal razão é que uma verdadeira economia planificada não é possível enquanto os pontos chave da economia permaneçam em mãos privadas. Pode-se ter uma economia capitalista de mercado ou uma economia socialista planificada, mas não se podem ter ambas as coisas. Não se pode planificar o que não se controla e não se pode controlar o que não se possui.

Para se avançar ao socialismo, primeiro há que romper o poder econômico da oligarquia que o utiliza para sabotar o processo revolucionário. Isto significa jogar duro com a sabotagem econômica, o açambarcamento, a fuga de capitais e a especulação. A única forma de resolver os problemas econômicos é mediante a nacionalização da terra, dos bancos e das principais indústrias sob o controle operário.

Tão logo a notícia da enfermidade do Presidente se tornou pública, levantaram-se vozes a favor de uma “transição”, que para elas significava o abandono dos objetivos socialistas da Revolução e o compromisso com a burguesia e a oposição. Chávez respondeu a isto dizendo que “a única transição que se coloca e se deve acelerar é a transição do capitalismo ao socialismo”. Isso é cem por cento correto. A revolução deve avançar para substituir o velho Estado burguês por novas instituições democráticas baseadas nos conselhos operários revolucionários socialistas, nos conselhos comunais etc.

Há muitos desafios, tanto externos quanto internos. A revolução enfrenta uma campanha constante de sabotagem por parte da oligarquia e do imperialismo, que se negam a reconhecer a vontade da maioria expressada democraticamente em numerosas ocasiões. Para enfrentar estes desafios será necessário adotar medidas sérias.

As mesmas forças que organizaram o golpe de Estado de 2002, a sabotagem patronal de 2002-03, as guarimbas (armadilhas, tumultos de rua, provocações) em 2004, que introduziram os paramilitares colombianos... são as mesmas forças que, nos últimos dois meses, organizaram uma campanha de rumores, insinuações, especulação e açambarcamento desprezíveis. Nada mudou.

Realizemos o legado de Chávez!

Em 12 de agosto de 2009, o jornal diário Público reproduziu uma entrevista com Chávez, onde lemos o seguinte:

Pergunta: “Chávez é imprescindível para consolidar a revolução bolivariana?”.

Resposta: “Bertolt Brecht disse aquilo de que os que lutam toda a vida são os imprescindíveis. Desse ponto de vista, sou um lutador de toda a vida. E seria um dos imprescindíveis. Mas não o sou. Agora, muito além do individual, quando se fala de imprescindível, poderíamos buscar uma palavra mais aplicável à política. Prefiro falar das condições necessárias e das condições suficientes. Carlos Marx falava de condições objetivas e subjetivas. Já o disse. Não tenho nada de especial que tu não tenhas. O que sou é produto de umas circunstâncias históricas. Um conjunto de condições objetivas e subjetivas que se foram criando na Venezuela.

“Atribuir a Hugo Chávez, aquele menino que nasceu há 55 anos em uma choça, a um camponês que se tornou soldado, todo o vento do mal, como disse um dia Bolívar, é impossível. Isso seria dar-me uma importância que não mereço. Fui arrastado pelas circunstâncias e desempenho meu papel, meu rol. A existência de Chávez é necessária, mas não suficiente. Para que haja uma revolução faz falta um povo consciente e unido, um projeto e uma consciência. Na Venezuela se apresentaram estas condições”.

O Presidente, sem dúvida, era demasiado modesto aqui quando descrevia seu próprio papel. Que ele era o produto de seu tempo e das condições particulares que existiam em seu país, ninguém pode duvidar. Mas houve muitos outros que eram produto das mesmas condições, incluindo os que se descrevem a si mesmos como revolucionários e comunistas, e que, contudo, não foram capazes de desempenhar o papel que ele desempenhou.

Não havia ninguém como Chávez quando estava vivo e não há uma só pessoa que o possa substituir agora que está morto. É evidente que apoiamos a eleição de Nicolás Maduro à presidência. Mas devemos questionar seriamente a ideia de que um homem sozinho possa levar a revolução à vitória. Esta era uma debilidade da qual o Presidente Chávez era muito consciente e falamos disso em mais de uma ocasião.

Admirava e respeitava ao Presidente ao vê-lo com um homem muito honesto e como um líder excepcional. Contudo, uma revolução não pode depender de um só homem. Chávez o sabia muito bem. Em três de julho de 2008, convidou-me a acompanha-lo em seu automóvel durante uma campanha eleitoral na Ilha de Margarita. Assinalou a multidão de pessoas entusiasmadas com camisetas vermelhas, aplaudindo desde os lados da rodovia. Voltou-se para mim e me disse: “Esta é a gente que deve tomar o controle desta revolução”.

No dia de sua morte, estas palavras estiveram ressoando de novo em minha mente. Agora que Hugo Chávez já não está conosco, o futuro da revolução bolivariana e seu avanço para o socialismo dependerá dos trabalhadores, dos pobres, dos camponeses e da juventude revolucionária que têm sido a força motriz da revolução e que a defenderam em todos os momentos críticos. Tudo depende disto.

Depois da morte de Chávez, a revolução venezuelana se encontra em uma encruzilhada. As massas derrotaram a reação em muitas ocasiões. Demonstraram em repetidos momentos sua vontade de mudar a sociedade. Mas as forças da reação não foram derrotadas. A oligarquia continua controlando as alavancas chaves da economia e está constantemente conspirando contra a Revolução. Washington está participando em conspirações contrarrevolucionárias.

Hugo Chávez já não está conosco. Mas a história da Revolução venezuelana não terminou. Há vários finais possíveis e nem todos eles são agradáveis de contemplar. As massas ainda estão aprendendo, o Movimento Bolivariano ainda está se desenvolvendo. A tremenda polarização entre as classes terminará em um enfrentamento em que todos os partidos, tendências, programas e indivíduos serão postos à prova.

Repito o que escrevi logo depois de meu primeiro encontro com o presidente Chávez:

“Que se necessita? Ideias claras, uma compreensão científica e um programa, política e perspectivas consequentemente revolucionárias.

“A única garantia para o futuro da Revolução Bolivariana consiste no movimento a partir da base: o movimento de massas que, encabeçado pela classe trabalhadora, deve tomar o poder em suas próprias mãos. Isso exige a rápida construção da Corrente Marxista Revolucionária, a seção mais consequentemente revolucionária do movimento.

“Creio que um crescente número de pessoas no Movimento Bolivariano está buscando as ideias do marxismo. Estou seguro de que isto se aplica a muitos de seus dirigentes. E Hugo Chávez? Disse-me que não era marxista porque não havia lido suficientes livros marxistas. Mas ele os está lendo agora. E, em uma revolução, as pessoas aprendem mais em 24 horas que em 20 anos de existência normal. No final, o marxismo atrairá a todos os melhores elementos da sociedade venezuelana e os fundirá em uma força de combate invencível. É nesta rota onde se encontra a possibilidade da vitória”.

Estas linhas foram escritas há nove anos. Não vejo nenhuma razão para mudar uma só palavra hoje.

Londres, 11 de abril de 2013.

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